O cenário teatral carioca continua movimentado, mas o espaço para a crítica nos jornais impressos da cidade se tornou cada vez mais escasso. A solução? A internet aliada ao surgimento de uma nova safra de estudiosos das artes cênicas. O ambiente virtual tornou-se essencial para a discussão do teatro contemporâneo, a troca de ideias e novos formatos, e também como guia do espectador até a poltrona.
A análise profunda sem denunciar juízo de valor é o objetivo da revista eletrônica
Questão de Crítica, lançada em março de 2008, que busca tirar a crítica do seu lugar-comum. “Queríamos fazer algo diferente do que se via no jornal, misturar o jeito acadêmico com uma linguagem acessível. Escrever para um público interessado, que tem vontade de ler sobre teatro”, explica uma das idealizadoras do portal, Daniele Avila. Para impulsionar o trabalho, Daniele, junto com os colaboradores da revista, promoveu, no mês passado, o
1º Encontro Questão de Crítica que teve como objetivo debater a crítica teatral, dialogando com outros segmentos como cinema, internet, filosofia. O evento recebeu uma série de profissionais ligados às artes cênicas. “Quisemos ‘sair’ do site para chamar a atenção sobre a crítica e promover discussões importantes sobre o teatro e áreas interligadas”, acrescenta. O ponto principal da revista eletrônica é provocar um debate de qualidade. “Estamos criando e fazendo ideias. Não precisamos nos expressar de forma rasa, por achar que o leitor não terá interesse. Queremos pensar sobre teatro, criar pontes e não apenas falar se a peça é boa ou ruim”, reforça.
A tradutora e dramaturga da companhia carioca
Teatro do Pequeno Gesto, Fátima Saadi, contesta o padrão com que se divulgam críticas ditas mais tradicionais. “Não sei se ainda podemos chamar de crítica a apreciação de espetáculos que segue fórmulas batidas – alguma informação sobre o autor e sua época, brevíssima menção ao conteúdo do texto e distribuição de adjetivos a cada um dos elementos do espetáculo”. O crítico teatral e doutorando em Teatro pela UniRio Daniel Schenker também enxerga diferenças entre o que está sendo produzido hoje e a fórmula tradicional. “No que diz respeito aos críticos do Rio de Janeiro que exercem a função há bastante tempo, existe um certo formato relacionado à análise do espetáculo por fases dentro de um mesmo texto (falar sobre a peça, depois a direção, os elementos técnicos e os atores) que já não é seguido como modelo”. Schenker ressalva, porém, que não há um perfil da crítica proposta pelos novos pensadores, “talvez porque ainda não tenham despontado em número suficiente para determinar tendências”.
A temida crítica Barbara Heliodora, de
O Globo, aponta os problemas na formação de um profissional capaz de avaliar minuciosamente um espetáculo. “Essa formação é limitada por questões econômicas, estéticas. Mas acredito que a renovação tem de haver, e nesse sentido sempre aparecem novos críticos, mas eles sofrem com a falta de espetáculos. Antes havia espetáculos maravilhosos e eu tive a sorte de assisti-los. Acho que o que falta para aumentar o número de críticos é a própria matéria-prima que padece pela falta de quantidade”, acredita.
Se a quantidade de críticos ainda não é significativa, na opinião de Schenker e Barbara, especialistas na área acreditam que existe um movimento de renovação no meio. A jornalista Luciana Eastwood Romagnolli, setorista da área, avalia que o fenômeno no Rio de Janeiro não se encontra mesmo nos grandes veículos, mas sim no meio alternativo da internet. “Os novos críticos se pautam por um outro pensamento do que a crítica de teatro pode ser, um trabalho que não encontraria espaço na imprensa carioca tal como ela se organiza hoje”, acredita.
O ambiente universitário é propício para que mudanças como essas se fortifiquem, como acredita Daniele Ávila. “A Questão de Crítica surgiu dentro da
Uni-Rio, no curso de Teoria do Teatro. Acredito que é um meio onde existe espaço para reflexão do teatro focado na contemporaneidade e que se dá atenção à prática e teoria”, ressalta. Fátima Saadi também credita aos bancos acadêmicos umas das razões para o aparecimento dos novos críticos. “Isso reflete o amadurecimento do trabalho nas escolas de teatro e nas universidades de artes cênicas e de áreas afins. Denota também uma nova maneira de conceber a crítica e seu objeto. A crítica abandona sua pretensa objetividade, baseada no instrumental técnico oferecido a partir dos anos de 1970 aos estudiosos da área, e elege novos referenciais para sua reflexão. Sem abandonar o domínio dos estudos teatrais, aqueles que escrevem sobre teatro dialogam com criadores e críticos de áreas como, por exemplo, filosofia, estética, crítica da cultura, artes plásticas, literatura e sociologia”.
O crítico de teatro Macksen Luiz, que escreveu para a edição impressa do
Jornal do Brasil (JB) durante 29 anos, criou seu próprio
blog para dar continuidade ao trabalho, mas admite que conhece poucos críticos da nova leva. “Leio alguns blogs especializados, sei que a maioria é oriunda do curso de Teoria (
do Teatro) da UniRio e isso traz uma certa especialização aos trabalhos”. Macksen, inclusive, atenta sobre a possibilidade de os novos pensadores conseguirem um lugar no meio impresso. “Acredito que alguns deles tenham como objetivo chegar ao jornal de papel e isso não é algo para um futuro distante. Evidentemente, isso pode acontecer pela renovação natural e pelo desejo de se escrever neste tipo de mídia”, completa. Para Daniele, este é um objetivo possível para muitos críticos, principalmente pelo valor simbólico que a mídia impressa ainda permite. “A atividade traz status e, querendo ou não, tem reconhecimento no meio teatral da cidade. Muitos escrevem de forma mais jornalística visando a este meio (impresso), além de ser uma maneira de sustento, uma vez que o trabalho na internet nessa área ainda carece de recursos”. Porém, o surgimento dessa nova demanda de pensadores (e de certa forma suas pretensões) parece flutuar no caminho inverso do jornalismo impresso, que abre cada vez menos espaço ao meio opinativo.
Para o blogueiro e crítico teatral
Lionel Fischer esta redução se deve ao fato da diminuição de interesse da mídia impressa neste conteúdo. “Seja qual for a natureza de reflexão, ela interessa cada vez menos aos veículos de comunicação, o que parece estar em sintonia com o interesse também, cada vez menor de as pessoas refletirem sobre qualquer fenômeno”, opina. Macksen acredita que independentemente do meio que se busca a crítica o importante é o que ela estimula. “Meio impresso ou não, o leitor procura o que deseja. O que temos de fazer são textos que possam capturar o olhar sensível dele”.
Segundo Daniel Schenker, a perda de espaço da crítica deu-se possivelmente pelo fato do teatro ser uma manifestação artística menos mercadológica. Fátima Saadi reitera que o teatro, em termos de números, não alcança o mesmo público do “cinema-pipoca ou dos shows de música, e isso pesa no espaço que o jornal atribui às colunas teatrais, na medida em que elas são compreendidas como uma extensão do serviço”, diz. “Além disso, atualmente está explícito, de forma quase grosseira, que a função do crítico de jornal é evitar dissabores ao espectador, isto é, impedir que ele vá ver algo que fuja a seu (do crítico e de seu público) padrão de gosto. Com isso, lamentavelmente, se perde a perspectiva histórica”, conclui. Em contrapartida à mídia impressa a internet tornou-se o local de difusão das mais diversas ideias, através de sites e blogs, e que amplia as possibilidades de novos nichos para quem escreve, além de disseminar o conteúdo que se deseja a um possível público diverso. Para Daniel Schenker, porém, o surgimento constante de diversos veículos virtuais acarreta em um movimento inverso: o poder de repercussão da mídia impressa acaba sendo maior que a web. Apesar disso, Schenker acredita que a internet se tornou um caminho possível pela sua viabilidade, tanto para quem está começando quanto para críticos que perderam espaço no meio impresso. Luciana Ronagnoli também vê este efeito dicotômico em relação às possibilidades da internet. “Há uma facilidade na hora de escrever, mas o alcance dessas críticas proferidas no meio virtual é extremamente variável e depende de outras formas de legitimação, sejam externas (como o crítico que traz sua legitimação do jornal onde escrevia ou de outras atividades praticadas em outros contextos) ou internas (casos de quem constrói uma reputação escrevendo na internet)”, afirma.
Lionel Fischer já escreveu em jornais como O Globo e Última Hora e há três anos dedica-se a seu
blog. Ele afirma que não é possível mensurar o impacto gerado pelas suas críticas, mas acredita que a discussão abordada no blog sobre o fazer teatral gera interesse. “No momento tenho 345 ‘seguidores’ e eles certamente são pessoas interessadas em teatro, ainda que não exerçam a profissão de artista”. Fischer compara a internet a uma moeda que possui duas faces. “Ela pode ser encarada tanto como um veículo sério que visa discutir questões relativas ao teatro, formuladas por profissionais gabaritados, quanto espaço facilmente ocupado por pessoas despreparadas que, isentas de qualquer avaliação - como ocorria nos jornais por parte da editoria - postam em seus blogs eventuais barbaridades.
Macksen Luiz está desde janeiro desse ano no meio virtual. Enquanto trabalhou no JB, pensou em criar um blog, porém, segundo ele, não haveria mudanças significativas em passar o texto para a web, por isso a ideia do blog surgiu em um momento que ele pode se dedicar à área. “Antes eu pensava que iria ‘chover no molhado’, isto é, passar para a internet o que estava impresso”, conta. Mesmo com a mudança de ‘casa’, Macksen afirma que o conteúdo é o mesmo. “O que está em jogo é a preservação do exercício da crítica. E isso não foi alterado”, frisa. A adesão à internet movida por segmentos diversos e que, por vezes, não seguem as mesmas ideias só reafirma seu valor de ser um lugar público em tempos que todos sabem e querem dar opinião. Fátima Saadi afirma que o ressurgimento da presença palpável do crítico no que ele escreve, conduz a uma reflexão a partir de pontos de vista e contribuições metodológicas diversas. Ela cita Galileu, personagem da peça homônima do dramatúrgico alemão Bertold Brecht, como paradigma. ‘Pensar é um grande prazer. E a crítica propõe um olhar pausado e afetivo sobre o teatro’.
Colaboração de Vanessa Didolich Cristani