terça-feira, 27 de setembro de 2011

A lady da crítica teatral


Terça-feira, 27 de Setembro de 2011 | ISSN 1519-7670 - Ano 16 - nº 661 - 27/09/2011
ENTREVISTA / BARBARA HELIODORA
Por Paulo Werneck em 27/09/2011 na edição 661
Reproduzido do suplemento “Ilustríssima” da Folha de S.Paulo, 25/9/2011: título original “Lady Heliodora”; intertítulos do OI
Barbara Heliodora não é apenas a decana da crítica de teatro brasileira, mas também o símbolo de um rigor que cultivou antipatias no meio teatral carioca. As palavras duras que dirige às produções que não lhe agradam (“leitura óbvia”, “texto confuso e gratuito”, “direção agitada”, “montagem desastrada”) sobressaem em relação aos elogios que volta e meia distribui sem economia.
Ficou carimbada como uma crítica severa e durona. Atuante em jornais e revistas desde 1957, com um intervalo entre 1964 e 1985, escreve cerca de 80 críticas por ano. Especialista em Shakespeare e Nelson Rodrigues, ela recebeu a Folha em sua casa, no bairro carioca do Cosme Velho, um dia depois de fazer 88 anos.
“Por volta de 1850 ou 60, há algum teatro”
Como a sra. avalia o teatro brasileiro de hoje?
Barbara Heliodora – Há vários aspectos diferentes. Uma coisa positiva é que estão sendo levados [ao palco] muito mais textos brasileiros, mas é claro que, como é algo recente, ainda há muita coisa ruim. Mas acho que tem que ser, tem que continuar a insistir. Você pega dois países colonizados, os EUA e o Brasil. Os EUA também tiveram degredados. Tudo o que a gente teve aqui, eles tiveram lá também, mas eles foram colonizados pelos ingleses, que têm uma riqueza teatral imensa. Então, desde a colônia eles recebem uma influência teatral muito forte. Portugal não tinha tradição teatral para nos legar. Além disso, o tipo de colonização, com as grandes propriedades, as capitanias hereditárias, aquele negócio todo. Não houve uma formação de núcleos urbanos a não ser praticamente no final do século 19. Você não faz teatro se não tem plateia. A primeira arte cênica que teve plateia no Brasil foi o cinema, que era acessível por ser duplicável. O cinema nos EUA buscou o público que vinha do teatro; conosco, não, o teatro teve de ir catar público no cinema. Não houve essa transição, o que dificultou muito o processo. O pouco teatro que Portugal nos trouxe era francês, traduzido.
Então, você tem na Independência, logo depois, o [dramaturgo e diplomata] Martins Pena [1815-48], que é maravilhoso. E aí volta um período de silêncio. Mais tarde, por volta de 1850 ou 60, há algum teatro. No fim do século, na República, aí sim, há um período de intensa atividade cênica, com As Borboletas, do Arthur Azevedo, entre outros. Depois disso houve surtos de teatro brasileiro, mas sem continuidade.
“Tem que se insistir para que apareçam autores de fôlego”
Que dificuldades isso trouxe?
B.H. – Isso dificultou a linguagem. O problema dos autores brasileiros era que, até poucas décadas atrás, você aprendia que até podia falar errado, quer dizer, da forma como se fala no Brasil, mas que tinha de escrever da forma correta, como se fala português em Portugal. Hoje em dia não é mais assim, mas isso só desde o Nelson [Rodrigues]. O Nelson foi quem quebrou isso porque ele era um bom repórter. Vários autores pré-Nelson, na hora em que se sentavam, escreviam o português correto. Esqueciam que o que estavam escrevendo era para ser uma linguagem falada. E, quando o ator dizia aquilo no palco, soava falso porque ninguém falava daquele jeito. Isso prejudicou muito a dramaturgia brasileira. Você não reconhecia o brasileiro em cena. A partir do Nelson, você começa a reconhecer o brasileiro em cena.
E quem fez isso depois do Nelson?
B.H. – Depois tem, por exemplo, o Silveira Sampaio, que fez pela zona sul [do Rio] o que o Nelson fez pela zona norte. Só que é um autor que ninguém mais monta, a família dele causou muita dificuldade para as montagens. Mas ele fez comédias maravilhosas. A Trilogia do Herói Grotesco é sensacional. Ele tinha um talento fantástico, é pena que seja pouco conhecido. Um pouco depois veio o Millôr, que também domina a cena muito bem, de maneira que houve todo um movimento, mas eu acho que é porque o Brasil estava mudando. No momento, tem muito autor brasileiro que é bom, mas nem tudo pode ser bom, a verdade é essa. Tem que se insistir para que apareçam autores de fôlego.
“É uma ilusão considerar o teatro superado”
Quem a sra. destaca entre os nomes novos da dramaturgia?
B.H. – Ah, não sei, não quero dizer assim porque não conheço o bastante. Por exemplo, vejo no jornal de São Paulo autores de quem nunca ouvi falar porque estão em São Paulo. Aqui tem o [Jô] Bilac, que é bom, tem vários, mas algumas coisas são muito interessantes e outras são mais fracas.
E o que a sra. acha do teatro experimental, de vanguarda?
B.H. – Às vezes, as pessoas se iludem um pouco e o que fazem não chega a ser uma experiência válida. Falta um domínio do teatro tradicional. As pessoas experimentam sem conhecer o que veio antes, então fica um pouco falso, apenas ilusoriamente experimental. Há uma preocupação em ser original que fica superficial. Mas é preciso fazer. Eu sempre digo que o necessário são os conservadores, porque a mudança é fatal. Essa está sempre em dia. Então, para controlar um pouquinho, é preciso que alguém diga “peraí”, “aguenta aí”. Mas vai passando o tempo e tudo vai mudando – e a mudança é desejável e inevitável.
A sra. se vê como conservadora?
B.H. – Eu me vejo mais como neutra. Porque gosto das duas coisas. E acho que é uma ilusão considerar o teatro superado. Aqui é que tem isso, mas nos outros países a gente vê de tudo, tem que fazer uma coisa e outra. Porque o próprio público só vai realmente apreciar uma experiência se souber o que é teatro. Ele tem que já ter visto, para poder comparar uma coisa e outra e pensar: “Ah, mas isso aqui é novo...” Senão não tem referência.
“Todos pensam em fazer carreira na Globo”
A sra. acha que leva mais gente para o teatro ou faz um alerta sobre aquilo que não vale a pena?
B.H. – Alguns produtores, diretores etc. já me disseram que a crítica negativa não tira ninguém do teatro. Mas a crítica positiva leva gente. Dizer que a crítica acaba com o espetáculo não é verdade.
A TV tem sido um centro de produção de dramaturgia. Tem levado público ao teatro?
B.H. – Não, acho que não. A televisão não só atrai um público que era do teatro. Há um grande problema para ir ao teatro ou a qualquer lugar. Casal jovem com filho pequeno não tem com quem deixar [o filho], então a televisão é uma distração para quem não tem condições de ir a lugar nenhum. É uma coisa difícil. Antigamente as famílias moravam juntas, sempre tinha uma tia em casa. Mas, hoje, como é muito unitário, não pode sair de casa porque não tem com quem deixar o filhinho pequeno.
A senhora não acredita numa dramaturgia vinda da televisão?
B.H. – Não. São veículos completamente diferentes. A dramaturgia de telenovela é uma coisa, escrever para o teatro é outra coisa e cinema é outra coisa. São caminhos diferentes. Agora, os melhores atores de televisão fizeram teatro. A televisão deveria ajudar o teatro porque o ator bem formado no teatro vai ser bom na televisão também. Uma coisa angustiante é que os cursos de teatro estão atulhados de candidatos que só pensam na TV. Não pensam em fazer carreira no teatro, estão todos pensando em fazer carreira na Globo.
“O pior são os autocomplacentes”
A sra. falou da família de Silveira Sampaio. O diretor Marco Antonio Braz se queixou da família de Nelson Rodrigues, que seria o autor mais caro do mundo.
B.H. – Ele fala é que eles querem 10%, que é o que todo autor pede, 10% no mundo inteiro.
Ele diz é que a família pede 10% do patrocínio.
B.H. – Aí, eu não li porque vi o título [da reportagem] e essas brigas me cansam. Mas o que acho é que o problema do custo do espetáculo, com a legislação e o clima atual, não há mais sobrevivência com bilheteria. Está todo mundo dependendo de ser financiado, só que com esses financiamentos dá para montar e ficar dois meses. Qual espetáculo se paga em dois meses? E o que que nós estamos vendo? Uma enxurrada de monólogos, que é uma coisa horrorosa.
O mau teatro afasta o público?
B.H. – Essa frase não é minha. Gianni Ratto dizia isso. Eu me lembro claramente de uma vez ele me perguntar eu tinha ido a uma peça e ele disse: “Como é que foi?” Eu digo: “Ah, foi muito fraca.” Ele disse: “Isso prejudica todo o teatro.” Isso é que é... As pessoas da classe às vezes não têm noção disso. Uma pessoa que nunca foi ao teatro, o que acontece muito, vai pela primeira e vê uma coisa ruim, faz voto de castidade, nunca mais volta. É o tal negócio: o mau cinema tem o mito de que custa barato, é quase tanto quanto o teatro hoje em dia, pelo menos a fotografia não está borrada, né, aquela coisa. Então, as pessoas vão ao cinema e voltam na semana seguinte, entram no meio, aquelas coisas. Se é ruim, a pessoa não volta ao teatro durante muito tempo. Falta consciência. Prefiro um espetáculo que tentou muito, não conseguiu, mas a gente sente que foi sério. O pior são os autocomplacentes, que acham que tiram tudo de letra e fazem peças horríveis.
“A única coisa que ouvi dela [Sarah Bernhardt] é um horror”
Como é a senhora se protege da complacência ao escrever?
B.H. – Complacência é sempre condenável. A gente fala sobre o que viu.
Seu coração nunca amolece?
B.H. – Não. Dói quando eu vejo um engano de gente que costuma até fazer bem. Procuro estabelecer que, quando vejo uma coisa que está errada, mas que a gente sente que foi bem trabalhada e que os atores estão atuando com responsabilidade, que houve uma direção... Pode ser que estivesse tudo errado, mas como foi feito com seriedade, é outra coisa. O que acho horrível é que quando a gente sente que está todo mundo ali, sabe, “eu sou maravilhoso” e tal, o que eu fizer está bom. Isso eu acho horrível.
A crítica pode preservar o trabalho de grandes atrizes, como a Sarah Bernhardt, por exemplo?
B.H. – Mas quem é que sabe como ela era? Eu, por exemplo, acho que ela devia ser horrível.
Acha mesmo?
B.H. – Acho. Ela devia ser mais personalidade do que atriz. Porque era a Sarah Bernhardt. Mas eu não sei, a única coisa que ouvi dela gravado é um horror. É um trecho do Horace [imita Sarah]. Eu tenho a impressão que ela devia ser uma personalidade muito marcante. Agora, não sei a qualidade dela como atriz. Ninguém sabe. Ficar famoso é uma coisa, você saber como era é outra bem diferente. Cacilda [Becker], você não sabe como é que era, Cacilda era uma atriz deste tamanhinho, magrinha assim, e com uma vozinha assim [imita] e em Quem tem Medo de Virginia Woolf ela dizia que era gorda e todo mundo acreditava, ninguém reclamava que era dito que ela era gorda e na verdade não era. É a capacidade dela de persuasão.
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[Paulo Werneck, da Redação da Folha]