sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O que a crítica? PARTE I

espaço michel foucault – www.filoesco.unb.br/foucault

O que é a crítica?
[Crítica e Aufklärung]
Michel Foucault

Qu'est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. Bulletin de la Société française de philosophie, Vol. 82, nº
2, pp. 35 - 63, avr/juin 1990 (Conferência proferida em 27 de maio de 1978). Tradução de Gabriela
Lafetá Borges e revisão de Wanderson flor do nascimento.

Henri Gouhier - Senhoras, Senhoritas, Senhores, gostaria, de início, de agradecer ao Sr. Michel Foucault por ter inscrito esta sessão no tempo de estudos de um ano muito atribulado, já que nós o tomamos, eu não diria um dia depois, mas quase dois dias depois de uma longa viagem ao Japão. É o que explica que a convocação enviada para esta reunião tão lacônica; mas desse fato a comunicação de Michel Foucault é uma surpresa e, como se pode pensar que é uma boa surpresa, eu não farei esperar mais tempo ao prazer de ouvi-lo.

Michel Foucault - Eu vos agradeço infinitamente por ter me convidado a esta reunião, frente a esta Sociedade. Creio já ter feito uma comunicação há dez anos sobre um tema que era O que é um autor? Para a questão que gostaria de vos falar hoje, eu não dei título. O Sr. Gouhier bem quis dizer a vocês com indulgência que é em função da minha estada no Japão. Para dizer a verdade, é uma muito amável atenuação da verdade. Digamos que, efetivamente, até esses últimos dias, por pouco não tinha encontrado título; ou antes, tinha um que me perseguia mas que eu não queria escolher. Vocês verão por que: foi indecente. Na realidade, a questão que gostaria de falar a vocês, e que quero sempre vos falar, é: O que é a crítica? Seria preciso tentar manter alguns propósitos em torno desse projeto que não cessa de se formar, de se prolongar, de renascer nos confins da filosofia, sempre próximo dela, sempre contra ela, às suas custas, na direção de uma filosofia por vir, no lugar talvez de toda filosofia possível. E parece que entre a alta empreitada kantiana e as pequenas atividades polêmico-profissionais que trazem esse nome de crítica, me parece que houve no Ocidente moderno (a datar, grosseiramente, empiricamente, nos séculos XVXVI) uma certa maneira de pensar, de dizer, de agir igualmente, uma certa relação com o que existe, com o que se sabe, o que se faz, uma relação com a sociedade, com a cultura, uma relação com os outros também, e que se poderia chamar, digamos, de atitude crítica. É claro, vocês ficarão espantados ao ouvir dizer que há alguma coisa como uma atitude crítica e que seria específica da civilização moderna, então que houve tantas críticas, polêmicas etc. e que mesmo os problemas kantianos têm, sem dúvida, origens bem mais longínquas que aqueles séculos XV-XVI. Ficarão espantados também de ver que se tenta procurar uma unidade para essa crítica, que ela parece prometida pela natureza, pela função, eu ia dizer pela profissão, à dispersão, à dependência, à pura heteronomia. Além disso, a crítica existe apenas em relação a outra coisa que não ela mesma: ela é instrumento, meio para um devir ou uma verdade que ela não saberá e que ela não será, ela é um olhar sobre um domínio onde quer desempenhar o papel de polícia e onde não é capaz de fazer a lei. Tudo isso faz dela uma função que está subordinada por relação ao que constituem positivamente a filosofia, a ciência, a política, a moral, o direito, a literatura etc. E, ao mesmo tempo, quais que sejam os prazeres ou as compensações que acompanham essa curiosa atividade de crítica, parece que ela traz, de modo suficientemente regular, quase sempre, não somente alguma rigidez de utilidade que ela reivindica, mas também que ela seja subtendida por uma sorte de imperativo mais geral - mais geral ainda que aquela de afastar os erros. Há alguma coisa na crítica que se aparenta à virtude. E de uma certa maneira, o que eu gostaria de dizer a vocês era da atitude crítica como virtude em geral. Para fazer a história dessa atitude crítica, há vários caminhos. Eu gostaria simplesmente de sugerir a vocês aquele que é um caminho possível, ainda uma vez, dentre outros. Proporei a seguinte variação: a pastoral cristã, ou a igreja cristã enquanto ostentava uma atividade precisamente e especificamente pastoral, desenvolveu esta idéia - singular, creio eu, e absolutamente estranha à cultura antiga - que cada indivíduo, quais sejam sua idade, seu estatuto, e isso de uma extremidade a outra da sua vida e até no detalhe de suas ações, devia ser governado e devia se deixar governar, isto é conduzir à sua salvação, por alguém que o ligue numa relação global e, ao mesmo tempo, meticulosa, detalhada, de obediência. E esta operação de direcionamento à salvação numa relação de obediência a alguém deve se fazer numa tripla relação com a verdade: verdade entendida como dogma; verdade também na medida em que esse direcionamento implica um certo modo deconhecimento particular e individualizante dos indivíduos; e, enfim, na medida em que esse  direcionamento se desdobra como uma técnica reflexiva comportando regras gerais, conhecimentos particulares, preceitos, métodos de exame, confissões, entrevistas etc. Além do que, não se pode esquecer o que, durante séculos, se chamou na igreja grega technè technôn e na igreja romana latina ars artium, precisamente a direção de consciência; a arte de
governar os homens. Essa arte de governar, é claro, ficou por muito tempo ligada a práticas relativamente limitadas e finalmente, mesmo na sociedade medieval, ligada à existência conventual, ligada à e praticada sobretudo em grupos espirituais relativamente restritos. Mas eu creio que a partir do século XV e desde antes da Reforma, pode-se dizer que houve uma verdadeira explosão da arte de governar os homens, explosão entendida em dois sentidos. Deslocamento de início em relação a seu foco religioso, digamos se vocês querem laicização, expansão na sociedade civil desse tema da arte de governar os homens e dos métodos para fazê-la. E depois, num segundo sentido, multiplicação dessa arte de governar em domínios variados: como governar as crianças, como governar os pobres e os mendigos, como governar uma família, uma casa, como governar os exércitos, como  governar os diferentes grupos, as cidades, os Estados, como governar seu próprio corpo, como governar seu próprio espírito. Como governar, acredito que esta foi uma das questões fundamentais do que se passou no século XV ou no XVI. Questão fundamental a qual respondeu a multiplicação de todas as artes de governar - arte pedagógica, arte política, arte econômica, se vocês querem - e de todas as instituições de governo, no sentido amplo que tinha a palavra governo nessa época. No entanto, essa governamentalização, que me parece tão característica dessas sociedades do Ocidente europeu no século XVI, não pode estar dissociada, parece-me, da questão de "como não ser governado?". Eu não quero dizer com isso que, na governamentalização, seria opor numa sorte de face a face a afirmação contrária, "nós não queremos ser governados, e não queremos ser governados absolutamente". Eu quero dizer que, nessa grande inquietude em torno da maneira de governar e na pesquisa sobre as maneiras de governar, localiza-se uma questão perpétua que seria: "como não ser governado assim, por isso, em nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos, não dessa forma, não para isso, não por eles"; e se se dá a esse movimento da governamentalização, da sociedade e dos indivíduos ao mesmo tempo, a inserção histórica e a amplitude que creio ter sido a sua, parece que se poderia colocar deste lado o que se chamaria atitude crítica. Em face, ou como contra-partida, ou antes como parceiro e adversário ao mesmo tempo das artes de governar, como maneira de suspeitar dele, de o recusar, de o limitar, de lhe encontrar uma justa medida, de os transformar, de procurar escapar a essas artes de governar ou, em todo caso, deslocá-lo, a título de reticência essencial, mas também e por aí mesmo como linha de desenvolvimento das artes de governar, teria tido qualquer coisa nascida na Europa nesse momento, uma sorte de forma cultural geral, ao mesmo tempo atitude moral e política, maneira de pensar etc. e que eu chamaria simplesmente arte de não ser governado ou ainda arte de não ser governado assim e a esse preço. E eu proporia então, como uma primeira definição da crítica, esta caracterização geral: a arte de não de tal forma governado. Vocês me dirão que esta definição é ao mesmo tempo bem geral, bem vaga, bem fluida. Seguramente! Mas eu creio mesmo assim que ela permitiria marcar alguns pontos de ancoragem precisos do que eu tentei apelidar atitude crítica. Pontos de ancoragem históricos, é claro, e que se poderia fixar assim: 1º. Primeiro ponto de ancoragem: numa época onde o governo dos homens era essencialmente uma arte espiritual, ou uma prática essencialmente religiosa ligada à autoridade de uma Igreja, ao magistério de uma Escritura, não querer ser governado desta forma, era essencialmente buscar na Escritura uma outra relação que não aquela ligada ao funcionamento da lição de Deus, não querer ser governado era uma certa maneira de negar, recusar, limitar (digam como quiserem) o magistério eclesiástico, era a volta à Escritura, era a questão do que é autêntico na Escritura, do que foi efetivamente escrito na Escritura, era a questão de qual é a sorte de verdade que diz a Escritura, como ter acesso a esta verdade da Escritura na Escritura e a despeito talvez do escrito e até o que se chega com a questão finalmente mais simples: a Escritura era verdadeira? E em suma, de Wycliffe a Pierre Bayle, a crítica desenvolveu-se por um lado, que eu acredito capital e não exclusivo certamente, em relação à Escritura. Digamos que a crítica é historicamente bíblica.

2º. Não querer ser governado, está aí o segundo ponto de ancoragem, não querer ser governado assim, não é não mais querer aceitar essas leis porque elas são injustas, porque, sob sua antigüidade ou sob o seu brilho mais ou menos ameaçador que lhes dá a soberania de hoje, elas escondem uma ilegitimidade essencial. A crítica é então, desse ponto de vista, em face do governo e à obediência que ele exige, opor direitos universais e imprescritíveis, aos quais todo governo, qual seja ele, que se trate do monarca, do magistrado, do educador, do pai de família, deverá se submeter. Em suma, se vocês querem, reencontra-se aí o problema do direito natural. O direito natural não é certamente uma invenção da renascença, mas ele tomou, a partir do século XVI, uma função crítica que ele conservara sempre. À questão "como não ser governado?" responde-se dizendo: quais são os limites do direito de governar? Digamos que aí, a crítica é essencialmente jurídica.
E enfim, "não querer ser governado", é claro, não é aceitar como verdade, e aqui eu passarei muito rápido, o que uma autoridade diz ser verdadeiro, ou ao menos não é aceitar isso senão se se considera, por si mesmo, boas razões para aceitar. E desta vez, a crítica toma seu ponto de ancoragem no problema da certeza em face da autoridade. A Bíblia, o direito, a ciência; a escritura, a natureza, a relação a si; o magistério,  lei, a autoridade do dogmatismo. Vê-se como o jogo da governamentalização e da crítica, uma em relação a outra, deram lugar a fenômenos que são, creio eu, capitais na história da cultura ocidental, que trata-se do desenvolvimento das ciências filológicas, trata-se do desenvolvimento da reflexão, da análise jurídica, da reflexão metodológica. Mas, sobretudo, vê-se que o foco da crítica é essencialmente o feixe de relações que amarra um ao outro, ou um a dois outros, o poder, a verdade e o sujeito. E se a governamentalização é mesmo esse movimento pelo qual se tratasse na realidade mesma de uma prática social de sujeitar os indivíduos por mecanismos de poder que reclamam de uma verdade, pois bem, eu diria que a crítica é o movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade; pois bem, a crítica será a arte da inservidão voluntária, aquela da  indocilidade refletida. A crítica teria essencialmente por função a desassujeitamento no jogo do que se poderia chamar, em uma palavra, a política da verdade. Essa definição, malgrado seu caráter ao mesmo tempo empírico, aproximativo, deliciosamente longínquo em relação à história que ela sobrevoa, eu teria a arrogância de pensar que ela não é muito diferente daquela que Kant dava: não aquela da crítica, mas justamente de alguma outra coisa. Não é muito longe em definitivo da definição que ele dava da Aufklärung. É característico, com efeito, que, em seu texto de 1784 sobre o que é a Aufklärung, ele definiu Aufklärung em relação a um certo estado de menoridade no qual estaria mantida, e mantida autoritariamente, a humanidade. Em segundo lugar, ele definiu essa menoridade, ele a caracterizou por uma certa incapacidade na qual a humanidade estaria retida, incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem alguma coisa que fosse justamente a direção de um outro, e ele emprega leiten que tem um sentido religioso historicamente bem definido. Em terceiro lugar, creio que é característico que Kant tenha  definido essa incapacidade por uma certa correlação entre uma autoridade que se exerce e que mantém a humanidade nesse estado de menoridade, correlação entre este excesso de autoridade e, de outra parte, algo que ele considera, que ele chama uma falta de decisão e de coragem. E por conseqüência essa definição da Aufklärung não vai ser simplesmente uma espécie de definição histórica e especulativa; terá nessa definição da Aufklärung alguma
coisa que se revela um pouco ridícula sem dúvida de chamar de predicação, mas é em todo caso um apelo à coragem que ele lança nessa descrição da Aufklärung. Não se pode esquecer que era um artigo de jornal. Teria que fazer um estudo sobre as relações da filosofia com o jornalismo a partir do fim do século XVIII... A menos que ele tenha sido feito, mais eu não estou certo disso... É muito interessante ver a partir de qual momento os filósofos intervieram nos jornais para dizer algo que é para eles filosoficamente interessante
e que, no entanto, se inscreve numa certa relação com o público com efeitos de apelo. E enfim, é característico que, nesse texto sobre a Aufklärung, Kant dá como exemplos de retenção da menoridade da humanidade, e por conseqüência, como exemplos, pontos sobre os quais a Aufklärung deve erguer esse estado de menoridade e maioridade em, certo tipo, os homens, precisamente a religião, o direito e o conhecimento. O que Kant descrevia como a Aufklärung, é o que eu tentei até agora descrever como a crítica, como essa atitude crítica que se vê aparecer como atitude específica no Ocidente a partir, creio, do que foi historicamente o grande processo de governamentalização da sociedade. Com relação a essa Aufklärung (cujo emblema, vocês bem o sabem e Kant lembra, é "sapere aude", não sem que uma outra voz, aquela de Frederico II, diz em contraponto "que eles raciocinem tanto quanto querem contanto que obedeçam"), em todo caso, com relação a esse Aufklärung, como Kant vai definir a crítica? Ou em todo caso, pois eu não tenho a pretensão de retomar o que foi o projeto crítico kantiano no seu rigor filosófico, eu não me permitiria, diante de um tal auditório de filósofos, não sendo eu mesmo filósofo, sendo mal um crítico, com relação a essa Aufklärung, como se poderia situar a crítica, propriamente dita? Se efetivamente Kant chama todo esse movimento crítico que precedeu a Aufklärung, como vai situar, ele, o que entende pela crítica? Eu diria, e aqui estão coisas completamente infantis, que em relação à Aufklärung, a crítica será aos olhos de Kant o que ele dirá ao saber: você sabe bem até onde pode saber? raciocina tanto quanto querias, mas você sabe bem até onde pode raciocinar sem perigo? A crítica dirá, em suma, que está menos no que
nós empreendemos, com mais ou menos coragem, do que na idéia que nós fazemos do nosso conhecimento e dos seus limites, que aí vai a nossa liberdade, e que, por conseqüência, ao invés de deixar dizer por um outro "obedeça", é nesse momento, quando se terá feito do seu próprio conhecimento uma idéia justa, que se poderá descobrir o princípio da autonomia e que não se terá mais que escutar o obedeça; ou antes que o obedeça estará fundado sobre a autonomia mesma. Eu não pretendo mostrar a oposição que haveria em Kant entre a análise da Aufklärung e o projeto crítico. Isso seria, eu creio, fácil de mostrar que, para Kant, essa verdadeira coragem de saber que foi invocada pela Aufklärung, esta mesma coragem de saber consiste em reconhecer os limites do conhecimento; e seria fácil mostrar que para ele a autonomia está longe de ser oposta à obediência aos soberanos. Mas disso não fica menos que Kant fixou para a crítica em seu empreendimento de desassujeitamento em relação ao jogo do poder e da verdade, como tarefa primordial, como prolegômeno a toda Aufklärung presente e futura, de conhecer o conhecimento.
Eu não gostaria de insistir por mais tempo sobre as implicações desse tipo de deslocamento entre Aufklärung e crítica que Kant quis marcar por aí. Gostaria simplesmente de insistir sobre esse aspecto histórico do problema que nos é sugerido por isto que se passou no século XIX. A história do século XIX deu bem mais engrenagens à continuação do empreendimento crítico tal como Kant o havia situado de algum modo em
recuo em relação a Aufklärung, que a alguma coisa como a Aufklärung ele mesmo. Dito de outra forma, a história do século XIX - e, claro, a história do século XX, mais ainda - parecia dever, senão dar razão a Kant ao menos oferecer uma solidificação, a essa nova atitude crítica, a essa atitude crítica em retirada por relação a Aufklärung e que Kant abriu a possibilidade. Essa tomada histórica que parecia ser oferecida à crítica kantiana muito mais do que a coragem da Aufklärung, era simplesmente esses três traços fundamentais:
primeiramente, uma ciência positivista, isto é fazendo fundamentalmente confiança nela mesma, quando ainda mesmo ela se achava cuidadosamente crítica em relação a cada um de seus resultados; em segundo lugar, o desenvolvimento de um Estado ou de um sistema estático que se dava, a si próprio, como razão e como racionalidade profunda da história e que, por outro lado, escolhia como instrumentos procedimentos de racionalização da economia e da sociedade; daí, o terceiro traço, à costura desse positivismo científico e do
desenvolvimento dos Estados, uma ciência de um Estado ou um estadismo, se vocês querem. Tece-se entre eles toda uma rede de relações cerradas na medida em que a ciência vai desempenhar um papel cada vez mais determinante no desenvolvimento das forças produtivas, na medida em que, por outro lado, os poderes do tipo estático vão o exercer cada vez mais por entre conjuntos técnicos refinados. Daí, o fato de que a questão de 1784, o que é a Aufklärung?, ou antes a maneira que Kant, em relação a essa questão e a resposta que dava a ela, tentou situar seu empreendimento crítico, essa interrogação sobre as relações entre Aufklärung e Crítica vai tomar legitimamente o modo de uma desconfiança ou, em todo caso, de uma interrogação cada vez mais suspeita: de quais excessos de poder, de qual governamentalização, tanto mais incontornável que ela se justifique e a razão, esta razão ela mesma não é historicamente responsável? Ora, o devir dessa questão, creio eu, não foi absolutamente o mesmo na Alemanha e na França, e isso pelas razões históricas que seria preciso analisar já que são complexas. Poder-se-ia dizer grosso modo: é que, menos talvez por causa do desenvolvimento recente de um belo Estado novinho e racional na Alemanha do que por causa do já envelhecido vínculo das Universidades à Wissenschaft e às estruturas administrativas e estatais,
essa suspeita, de que há algo na racionalização e talvez mesmo na razão mesma que é  responsável pelo excesso de poder, pois bem, me parece que essa suspeita se desenvolveu sobretudo na Alemanha e, digamos para ser ainda mais breve, que ela se desenvolveu sobretudo no que se poderia chamar uma esquerda alemã. Em todo caso, da esquerda hegeliana à Escola de Frankfurt, houve toda uma crítica do positivismo, do objetivismo, da racionalização, da technè e da tecnicisação, toda uma crítica das relações entre o projeto fundamental da ciência e da técnica, que tem por objetivo fazer aparecer os elos entre uma
presunção ingênua da ciência de um lado, e as formas de dominação próprias à forma da sociedade contemporânea de outro. Para tomar como exemplo aquele que sem dúvida nenhuma que foi o mais longínquo do que se poderia chamar de uma crítica de esquerda, não se pode esquecer que Husserl em 1936 referia a crise contemporânea da humanidade européia a algo que abrigava a questão das relações do conhecimento à técnica, da épistèmè à technè. Na França, as condições para o exercício da filosofia e da reflexão política foram muito diferentes, e, por causa disso, a crítica da razão presunçosa e dos seus efeitos
específicos de poder não parece ter sido conduzida da mesma forma. E isso estaria, penso, do lado de um certo pensamento de direita, ao longo do século XIX e do século XX, que reencontrava essa mesma  acusação histórica da razão ou da racionalização sob o nome dos efeitos de poder que ele leva com ele. Em todo caso, o bloco constituído pelo Iluminismo e a Revolução impediu sem dúvida, de uma maneira geral, que se recoloque realmente e profundamente em questão essa relação da racionalização e do poder; talvez também o fato de que a Reforma, isto é, o que eu acredito ter sido, nas suas raízes mais profundas, o primeiro movimento crítico como arte de não ser governado, o fato de que a Reforma não havia tido na França a amplitude e a conquista que ela conheceu na Alemanha, fez, sem dúvida, que na França essa noção de Aufklärung com todos os problemas que ela colocava não teve uma significação tão ampla, e aliás ela nunca foi uma referência histórica tão longamente apresentada como na Alemanha. Digamos que na França, contenta-se com uma certa valorização política dos filósofos do século XVIII, ao mesmo tempo em que se desqualificava o pensamento do Iluminismo como um episódio menor na história da filosofia. Na Alemanha, ao contrário, o que era entendido por Aufklärung era considerado bem ou mal, pouco importa, mas certamente como um episódio importante, uma espécie de manifestação espetacular do destino profundo da razão ocidental. Acharia naAufklärung e em todo esse período, que em suma do século XVI ao XVIII serve de referência a esta noção de Aufklärung, tentava-se decifrar, reconhecer a linha de declive, a mais marcada da razão ocidental, enquanto era a política a qual ela estava ligada, que fazia o objeto de um exame suspeito. Tal é, se vocês querem, grosso modo, o quiasma que caracteriza a maneira que na França e na Alemanha o problema da Aufklärung foi posto no curso do século XIX e toda a primeira metade do século XX. Ora, creio que a situação na França mudou no curso desses últimos anos; e que de fato, esse problema da Aufklärung, (tal como tinha sido tão importante para o pensamento alemão desde Mendelssohn, Kant, passando por Hegel, Nietzsche, a Escola de Frankfurt etc...), me parece que na França chegou-se a uma época onde precisamente esse problema da Aufklärung pode ser retomado numa proximidade, suficientemente significativa, com os trabalhos da Escola de Frankfurt. Digamos, sempre para sermos breves, que - e isso não é espantoso - é da fenomenologia e dos problemas postos por ela que nós voltamos à questão do que é a Aufklärung. Ela nos fez voltar, com efeito, a partir da questão do sentido e do que pode constituir o sentido. Como fazer com que haja sentido a partir do não sentido? Como o sentido vem? Questão na qual se vê bem que é complementar a esta outra: como fez-se para que o grande movimento da racionalização nos tenha conduzido a tanto barulhos, a tanto furor, a tanto silêncio e mecanismo triste? Apesar de tudo, não se pode esquecer que A Náusea está há poucos meses da contemporânea Krisis. E é pela análise, pós-guerra, disso, a saber, que o sentido não se constitui senão por sistemas de constrangimentos característicos da maquinaria significante, é, me parece, pela análise desse fato que não há sentido senão pelos efeitos de coerção próprios às estruturas, que, por um estranho resumo, se reencontrou o problema entre ratio e poder. Penso igualmente (e aí seria um estudo a fazer, sem dúvida) que as análises da história das ciências, toda essa problematização da história das ciências (que, ela também, se enraíza sem dúvida na fenomenologia, que na França seguiu por Cavaillès, por Bachelard, por Georges Canguilhem, toda uma outra história), me parece que o problema histórico da historicidade das ciências não está sem ter algumas relações e analogias, sem fazer até um certo ponto eco, a esse problema da constituição do sentido: como nasce, como se forma essa racionalidade, a partir de que coisa que é absolutamente outro? Eis a recíproca e o inverso do problema da Aufklärung: o que faz com que a racionalização conduza ao furor do poder? Ora, parece que, sejam essas buscas sobre a constituição do sentido com a descoberta de que o sentido não se constitui senão pelas estruturas de coerção do significante, sejam as análises feitas sobre a história da racionalidade científica com os efeitos de constrangimento ligados a sua institucionalização e à constituição de modelos, tudo isso, todas essas pesquisas históricas não fizeram, me parece, senão confirmar como por um jogo rigoroso e como através de uma espécie de assassinato universitário o que foi, napesar de tudo, o movimento de fundo da nossa história desde um século. Pois, à força de celebrar que nossa organização social ou econômica carecia de racionalidade, nós nos encontramos frente eu não sei se demais ou insuficiente razão, em todo caso seguramente frente a poder demais; à força de ouvir cantar as promessas da revolução, eu não se aí onde ela se produziu ela é boa ou má, mas nós nos encontramos frente à inércia de um poder que indefinidamente se mantém; e à força de ouvir cantar a oposição entre as ideologias da violência e a verdadeira teoria científica da sociedade, do proletariado e da história, nós nos encontramos com duas formas de poder que se assemelhavam como dois irmãos: fascismo e stalinismo. Retorno por conseqüência da questão: o que é a Aufklärung? E se reativa assim os problemas que tinham marcado as análises de Max Weber: o que convém dessa racionalização que ela caracteriza não somente o pensamento e a ciência ocidentais desde o século XVI, mas também as relações sociais, as organizações estatais, as práticas econômicas e talvez até no comportamento dos indivíduos? O que fica dessa racionalização em seus efeitos de constrangimento e talvez de obnubilação, de implantação maciça e crescente e nunca radicalmente contestada de um vasto sistema científico e técnico? Esse problema, que nós somos obrigados na França de retomar sobre nossos ombros, esse problema do que é a Aufklärung? pode-se abordar por diferentes caminhos. E o caminho pelo qual eu gostaria de abordar, eu não o retomo absolutamente - e eu gostaria que vocês acreditassem em mim – em um espírito nem de polêmica nem de crítica. Duas razões conseqüentes fazem com que eu não busque outra coisa que não marcar as diferenças e de alguma forma ver até onde se pode multiplicar, dividir, remarcar uns em relação aos outros, deslocar, se vocês querem, as formas de análises desse problema da Aufklärung, que é talvez apesar de tudo o problema da filosofia moderna. Eu gostaria de, logo em seguida, abordando esse problema que nos torna fraternos em relação à Escola de Frankfurt, notar que de todas as maneiras, fazer da Aufklärung a questão central, isso quer dizer com toda a certeza, um certo número de coisas. Isso quer dizer de início que engaja-se numa certa prática que se chamaria histórico-filosófica, que não tem nada a ver com a filosofia da história e a história da filosofia, uma certa prática histórico-filosófica e por aí quero dizer que o domínio da experiência ao qual se refere esse trabalho filosófico não exclui dele nenhum outro absolutamente. Não é a experiência interior, não são as estruturas fundamentais do conhecimento científico, mas não é mais que um conjunto de conteúdos históricos elaborados por aí, preparados pelos historiadores e acolhidos todos fatos como fatos. Trata-se, de fato, dessa prática histórico-filosófica de fazer sua própria história, de fabricar como por ficção a história que seria atravessada pela questão das relações entre as estruturas de racionalidade que articulam o discurso verdadeiro e os mecanismos de assujeitamento que a eles são ligados, questão, vê-se bem, que desloca os objetos históricos habituais e familiares aos historiadores em direção ao problema do sujeito e da verdade que os historiadores não se ocupam. Vê-se igualmente que esta questão cerca o trabalho filosófico, o pensamento filosófico, a análise filosófica nos conteúdos empíricos traçados precisamente por ela. Daí, se vocês querem, os historiadores frente ao trabalho histórico ou filosófico vão dizer: "sim, claro, talvez", em
todo o caso não é nunca absolutamente aquilo, o que é o efeito de ruídodevido a esse deslocamento em direção ao sujeito e à verdade que eu falava. E que os filósofos, mesmo se eles não tomam todos os ares de galinhas d'angola ofendidas, pensam geralmente: " a filosofia, malgrado tudo, é bem outra coisa", isso sendo devido ao efeito de queda, devido a essa volta a uma empiricidade que não tem mesmo de ser para ela garantia de uma experiência interior. Concedemos a essas vozes do lado toda a importância que elas têm, e esta importância é grande. Elas indicam ao menos negativamente que se está no bom caminho, isto é, que através dos conteúdos históricos que se elabora e aos quais se está ligado já que são verdadeiros ou que valem como verdadeiros, coloca-se a questão: o que então eu sou, eu que pertenço a esta humanidade, talvez à margem, nesse momento, nesse instante de humanidade que está sujeitado ao poder da verdade em geral e das verdades em particular? Desubjetivar a questão filosófica pelo recurso ao conteúdo histórico, libertar os conteúdos históricos pela interrogação sobre os efeitos de poder cuja verdade - essa que eles pressupõem e marcam - os afeta, é, se vocês querem, a primeira característica dessa prática histórico-filosófica. De outra parte, essa prática histórico-filosófica se acha evidentemente numa relação privilegiada de uma certa época empiricamente determinável: mesmo se ela é relativamente e necessariamente fluida, essa época é, seguramente, designada como momento de formação da humanidade moderna, Aufklärung no sentido amplo do termo ao qual se referia Kant, Weber etc., período sem datação fixa, com múltiplas entradas já que se pode defini-la tanto quanto pela formação do capitalismo, a constituição do mundo burguês, a localização dos sistemas estatais, a fundação da ciência moderna com todos os seus correlativos técnicos, a organização de cara a cara entre a arte de ser governado e aquela de não ser governado de tal modo. Privilégio de fato, por conseqüência, para o trabalho histórico-filosófico que esse período, já que é aí que aparecem de alguma forma no âmago e na superfície das transformações visíveis, essas relações entre poder, verdade e sujeito que se trata de analisar. Mas, privilégio também no sentido de que trata-se de formar a partir daí uma matriz para o percurso de toda uma série de outros domínios possíveis. Digamos, se vocês querem, que não é porque se privilegia o século XVIII, porque interessa-se por ele, que se encontra o problema da Aufklärung; eu diria que é porque vê-se fundamentalmente colocar a questão o que é a Aufklärung? que se reencontra o esquema histórico da nossa modernidade. Não se tratará de dizer que os gregos do século V são um pouco como os filósofos do século XVIII ou embora o século XII já tivesse uma espécie de Renascença, mas sim de tentar ver sob quais condições, ao preço de quais modificações ou de quais generalizações pode-se aplicar a algum momento da história essa questão da Aufklärung, a saber as relações dos poderes, da verdade e do sujeito. Tal é o quadro geral dessa investigação que eu chamaria histórico-filosófica, eis como se pode agora a conduzir.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Onde está Aline?



Heron Moura

Eu também não conheço Aline Alvim. Não sei se ela é real ou virtual. Contudo, contrariamente ao que defendem os autores do artigo “Sobre ética e crítica em tempos de internet” (publicado no DC Cultura, de 20 de setembro de 2008), acho que Aline Alvim tem direito à existência. Aline Alvim publicou, neste suplemento cultural, algumas críticas sobre peças teatrais produzidas por grupos catarinenses. Mas ninguém nunca viu Aline, ela não dá aulas na UFSC ou na UDESC, ela não foi vista na Lagoa, Aline não existe.
Os autores do artigo citado reclamam que não sabem “a procedência” das críticas teatrais, e por isso questionam a legitimidade das leituras críticas de Aline (vamos chamá-la assim, com intimidade, já que parece que ela não existe mesmo).
Eu esperaria um pouco mais de fair play de atores e diretores de teatro. Eles inventam e encarnam seres imaginários. Eles dão corpo a vidas virtuais. Se aceitamos personagens em busca de um autor, por que não aceitar um personagem em busca de peças para criticar? Como separar o real do irreal no mundo fantástico do teatro?
A cobrança da procedência e das credenciais de Aline é o equivalente artístico do bordão social “sabe com quem está falando?”. Os autores do artigo, talvez irrefletidamente, cobram um status social de quem se dirige a eles, na forma de crítica de sua produção artística. Mas então para fazer crítica é preciso antes pegar um diploma (imaginário) de crítico? Quem, nessa ilha, está habilitado a fazer crítica teatral? Professores da UFSC e da UDESC? Unisul pode?
Onde está Aline, que não responde? Por trás de Aline há uma pessoa real. Alguém escreveu os textos. Não foi um robô. Aline não é um robô. Mas não seria maravilhoso se houvesse nessa Ilha da Magia um robô super-avançado, feito ali no CTC da UFSC, que entrasse disfarçado nas exibições de teatro e escrevesse críticas depois? Isso não seria amar o teatro ao extremo?
Aline é anônima, não é virtual. Seria antiético se ela usasse o anonimato para difamar pessoas. Mas ela apenas escreveu críticas teatrais. Os artistas envolvidos podem, é claro, se defender, mas não é isso que o artigo “Sobre ética e crítica em tempos de internet” faz. Esse artigo em nenhum momento debate a proposta artística de suas produções, o conteúdo estético das soluções adotadas nas obras. Aline provoca o debate estético, mas perguntam antes se ela existe. Já pensou se a gente perguntasse antes a Hamlet se ele existe para então ouvir o que ele tem a dizer? O teatro vive da crença na ficção.
Eu daria dois argumentos para mostrar que a ficção é essencial para a arte. Mais precisamente, uma mescla de ficção e realidade, que é o que Aline faz (supondo que ela não seja o robô do CTC).
Keith Devlin, no livro O gene da Matemática, (Record, 2006), tradução de Sergio Rego, argumenta que o ser humano desenvolveu, ao longo da evolução da espécie, um segundo cérebro. Esse segundo cérebro recebe informação não do mundo externo, mas do primeiro cérebro. Ou seja, ao passo que o primeiro cérebro está diretamente conectado ao mundo exterior, o segundo cérebro processa símbolos, representações mentais. Ele vive virtualmente, a partir de estímulos internos à mente. A vida dos símbolos nos deu muita coisa: os conceitos, a linguagem, a matemática e a arte. Mas os símbolos só existem na nossa mente. Desde o início, somos sensíveis tanto ao real quanto ao fictício. Aline, ao que parece, é um símbolo – ela vive no segundo cérebro. Mas não dá para extirpar o cérebro que imagina e simboliza. Assim como não dá para negar a parte do humano que se conecta ao mundo. Onde está Aline?
Outro argumento a favor da fusão entre real e irreal na arte é a interpretação de metáforas. Examinem a conhecida metáfora de João Cabral de Melo Neto: “Um galo sozinho não tece uma manhã”. Esse verso nos situa numa ponte entre o real e o irreal. Ele nos oferece um mundo em que galos são aranhas, e em que manhãs são teias. No entanto, não somos jogados de chofre num mundo imaginário, pois o galo do poema é ainda o galo que canta de manhã. A realidade, subvertida, retorna no poema. Há uma troca de significados entre o galo e a manhã, entre a aranha e a luz. Hamlet também pode descer do palco e apertar a nossa mão.
Por tudo isso, sou a favor da existência de Aline. Não sei quem é, se mora no Campeche ou na Trindade. Mas ela vai ao teatro e discute em público o que vê. Não é pouco.
Eu sempre tive a impressão de que nossa ilha é virtual. Sendo assim, a arte que se faz nela também é. Por que esquentar a cabeça se seres virtuais começam agora a opinar sobre a cultura na ilha? Isso é ótimo! O pior para um artista não é ser criticado, ainda que por seres imaginários. O pior para um artista é se exibir para as paredes, e ouvir como resposta apenas um silêncio bem real. (Publicado no Diário Catarinense, em 27 de setembro de 2008).
Este artigo foi publicado em 27/09/08 

Por uma crítica mais careta

POR DANIEL OLIVETTO *
O artigo escrito pelo professor Heron Moura, Onde está Aline?, publicado no último sábado no DC Cultura, dá continuidade às discussões sobre o anonimato de Aline Valim na Ilha, e eu gostaria de abrir um pouco mais a conversa sobre alguns aspectos, em especial no que diz respeito às relações entre anonimato, ficção e virtualidade, três coisas que me parecem muito distintas. Em primeiro lugar, concordo que a personagem Aline Valim, nossa crítica virtual, não seja um robô, portanto, é um ser que responde (ou deveria responder) por suas críticas. Honestamente, creio que um anônimo não responde por absolutamente nada, pois não se sabe que compromisso um anônimo tem quando escreve. E não se trata de conhecer ou não a procedência de um texto para poder discutir com suas idéias. Posso discutir com as idéias da bíblia sem saber quem a escreveu de verdade, não? No entanto, não saber quem é Aline Valim nos impede de discutir de outras maneiras suas "críticas", pois não sabemos de que lugar Aline nos fala. Não falo de ter ou não um pedigree, e sim de saber quem é o ser humano com quem converso, já que estamos lendo um jornal, material de grande compromisso com o real. Pode parecer "careta", mas se não sei quem escreve, para quem eu respondo? Com quem eu converso? Pode ser mesmo "careta" em tempos de internet acreditar em identidade, mas se não sei quem escreve, não faço idéia do que o autor quer com um texto, e creio que a noção de responsabilidade se baseia nisso: saber quem assume o que é dito. Sobre o que comenta Heron Moura a respeito do nosso dia-a-dia virtual, realmente estamos acostumados diariamente a responder diversos e-mails, sim, e a lidar com diversas pessoa@provedor.com.br. No entanto me parece muito distinto responder um e-mail para barbaraheliodora@provedortal.com.br e para alinevalim@provedortal.com.br, pois, eu sei quem é Barbara e não sei quem é Aline. Não é diferente responder virtualmente para um conhecido e para
alguém que não faço idéia de quem seja? Certa vez conversei virtualmente com Sara Kane em seu fotolog, após um comentário seu sobre um espetáculo que dirigi, Hagënbeck Ltda, referente a apresentação no Sesc Prainha em fevereiro de 2007. Não chamo a escrita de Sara Kane de crítica, e sim de comentário, pois creio que uma crítica não é apenas um texto em que alguém fala sobre suas impressões e adjetivos a respeito de uma obra, e sim um texto em que podemos refletir sobre a obra, um texto que fundamente suas idéias e impressões. Um texto crítico propõe um estudo mais especializado do que um comentário mais simples de blog. Ambos são importantes e abrem discussões, mas são distintos. Perguntei a Sara Kane porque não tinha ficado para o bate-papo ocorrido logo após a apresentação, momento em que poderíamos discutir presencialmente diversos temas, problemas do espetáculo, e o que mais fosse pertinente ali, logo após a sessão. Mas, tudo bem, a discussão se deu por fotolog e foi até prazerosa. Sara Kane não precisa de pedigree, afinal qualquer um pode ter um blog e escrever o que quiser. Mas não seria necessário saber de que lugar cada um fala? Quando minha mãe comenta sobre uma peça minha, ela sempre começa dizendo: "Olha, eu sou leiga, mas eu acho assim, né?...". Mamãe, que não tem pedigree de crítica, situa o lugar de onde fala e seus comentários sempre me ajudam muito. Comentário é comentário, e pode contribuir muito, sempre. Mas, quando se chama um texto de crítica, supomos que vamos ler um texto que abre uma discussão mais ampla e que não se baseia no  "eu acho assim". E esperamos muito menos que uma crítica pareça um texto-veredicto, que encerra ali o próprio ato reflexivo. Mas Sara escreve comentários, e não críticas, e por um tempo até achei seu anonimato interessante, embora lhe desse menos credibilidade que dou a qualquer pessoa com ou sem pedigree, pois como não faço idéia de quem seja Sara Kane, não sei se suas opiniões não passam de ironia. Quando minha mãe fala sobre teatro, eu sei de onde ela fala. Quando Edelcio Mostaço fala sobre teatro, eu sei de que lugar ele fala, e mesmo discordando muitas vezes dele, suas críticas se fundamentam, são escritas com compromisso de quem domina o assunto e me deixam este espaço para discordar e conversar a partir de seu texto. Será que é tão "careta" assim querer saber com quem estou conversando? O que ocorre com Aline Valim, nossa crítica que já chega fazendo sucesso na Ilha, é que esta ocupa um espaço privilegiado num veículo oficial, como comentam Jefferson Bittencourt e Marisa Naspolini em seu artigo Sobre ética e crítica em tempos de internet (publicado no DC Cultura de 20 de setembro de 2008). E neste espaço privilegiado se discute virtualmente o que os artistas fazem presencialmente, o que gera um atrito bastante compreensível. O teatro é uma arte presencial, que ocorre ali, frente a frente, e que coloca no mesmo território espaço-temporal a ficção e a realidade. No entanto, a respeito do que comenta Heron Moura (autor que eu sei que existe, pois, paranoicamente, corri para o site da UFSC para saber se estaria respondendo a um anônimo ou não), não é Hamlet quem desce do palco para cumprimentar o  público. Hamlet é um personagem, uma criação artística, e quem desce à platéia é um ator. Sara
Kane e Aline Valim, que são personagens de outro gênero criativo, não vão ao camarim de Hamlet dizer o que acharam, logo, assim como Hamlet, não existem como sujeitos. Honestamente, não penso que seja necessário um pedigree para escrever crítica. Eu já exercitei escrever algumas críticas, mas nunca tentei publicá-las, pois achava que não ajudavam a discutir muita coisa, e deixei de publicá-las por este motivo e não por não ter pedigree. E não tenho mesmo, mas, poderia publicá-las em meu blog, deixando claro o lugar de onde falo: "Sou ator, tenho 28 anos, etc e tal, e deste lugar olho a obra tal assim". Creio que para escrever crítica seja necessário conhecer o ambiente da obra que se critica, com ou sem "diploma de crítico" (aliás, diploma de crítico não existe!). Penso que é preciso assumir sua opinião, discuti-la de maneira generosa e responsável, e fundamentar o uso de "achismos" crônicos como "cometer deslizes infantis", como comenta Aline Valim em sua crítica sobre o espetáculo Simulacro de uma Solidão (publicada no DC). E fundamentar não significa defender uma tese, citar um cânone e fechar o parágrafo. No caso desta crítica de Aline talvez fosse importante fundamentar apenas justificando o que significa uma atriz "cometer deslizes infantis", ou dizer que o "jogo com o público não acontece". Como se sabe que uma peça chega ou não ao público? Aline Valim é "o público"? O que significa "o jogo não acontecer"? Sabemos que o espaço para crítica no jornais é muito limitado e às vezes com uma lauda e meia não se consegue fundamentar tudo, então, que tal ser menos impactante? Quando uma crítica apresenta este tipo de "achismo" radical _ e fechado em si mesmo _ não se tem muito como discutir. Se eu chego chutando a porta, ninguém vai me receber bem. Não foi assim que mamãe ensinou? Um crítico não precisa passar a mãozinha na cabeça de ninguém, nem dizer tudo cheio de cautelas, mas deveria fundamentar o que acha para que possamos discordar, pois um crítico não é "o público", e sim "um público". E ser generoso não é ser bonzinho, é ser educado, o que me parece o mínimo pra abrir uma conversa. Além de chutar a porta Aline Valim saiu correndo, porque não sabemos quem ela é.
Quando leio uma crítica que diz que num espetáculo se "comete deslizes infantis", sinceramente, o que me resta é fechar o caderno e pular para os classificados. Além de pouco educado, me parece covarde essa dimensão do anonimato. Talvez seja "careta" pensar assim, mas em tempos de tantas falas sobre a virtualidade que engole as relações humanas, opto pela caretice de tentar conversar com pessoas reais. Como já diria mamãe: "Eu acho assim, né?".
* Ator da Cia. Experimentus Teatrais e graduando em Artes Cênicas pelo Ceart/Udesc