domingo, 8 de janeiro de 2012

O papelão da crítica

Revista Época - Abril de 2010

Como os críticos perderam a fé - e a importância


A estudiosa Flora Sussekeind foi cruel no ensaio que escreveu para o caderno Prosa & Verso do jornal O Globo de 24 de abril. Seu texto brutal me fez meditar não apenas sobre o exercício que faço todos os dias - o da resenha cultural não-acadêmica de livros, cinema, teatro, música – como principalmente sobre a função e importância da crítica hoje. Será que os críticos acabamos? E que estamos reduzidos a seres rastejantes, presas fáceis daquilo que desde Theodor Adorno chamam “indústria cultural”?

Eu senti Flora se debatendo contra o estado de coisas atual. No artigo, ela convida o leitor a matar pela segunda vez um colega meu, o crítico Wilson Martins. Tudo em nome da restauração da moral na vida cultural. “Talvez seja necessário, na discussão de um espaço ainda crítico para a crítica, matar mais uma vez
Wilson Martins”, escreve Flora. Fazendo o papel de carrasca exumadora de cadáveres, ela acha que os autores do obituário de Martins, que morreu em Curitiba em 30 de janeiro aos 88 anos, foram excessivamente benévolos e prestaram tributo a um tipo de intelectual público que já não tem mais espaço na imprensa de hoje, quanto mais no mundo atual.

Confesso que essa passagem me provocou arrepios de fim de mundo. Afinal, partiu não de um escritorzinho jovem e bobo como tantos que abundam nas festas literárias, mas de uma autora admirável, renovadora da análise da literatura do chamado pré-modernismo e do naturalismo brasileiros, alguém que admiro profundamente. Eu sou capaz de entender a indignação de Flora com o mundinho de vaidades a que ficou reduzido o espaço da criação e da crítica, mas não compreendo ela chutar um crítico morto, que é pior que um cachorro morto neste país que odeia quem aponte erros, quem enuncie ideias, quem leia com atenção.

Flora denuncia o rebaixamento do conteúdo tanto do debate crítico quanto da própria dimensão social da literatura no país “nas últimas décadas”. E isso se deve, para ela, ao domínio da crítica marxista e da atual dominância dos conservadores. E estes, acha ela, adotaram Wilson Martins como paradigma, ou “imago exemplar do crítico”. Em outros termos, o conservadorismo consagrou a cultura como um espetáculo ridículo. Esta passagem é especialmente saborosa, embora as frases alongadas exijam certo fôlego do leitor: “Agora há um conservadorismo que é francamente hegemônico. E envolve desde o retorno às figuras todo-poderosas do especialista monotemático, do agenciador com capacidade de trânsito inter-institucional e do 
colecionador de miudezas, às interlocuções preferencialmente de baixa densidade dos minicursos e palestras-espetáculo, do universo das regras técnicas e das normas genéricas e subgenérica, fixadas acriticamente em oficinas de adestramento, à glamorização midiática de instituições autocomplacentes como a Academia Brasileira de Letras e correlatas, a formas variadas de culto a personalidades literárias, em geral mortas (e Clarice Lispector, Leminski, Ana Cristina Cesar têm sido objeto preferencial de dramaturgias miméticas, ficções e comentários “à maneira de”), mas também em vida veem-se autores mal lançados em livro, se converterem em máscaras que, com frequência, os aprisionam em marcas registradas mercadológicas de
difícil descarte”.

Nesse inferno das letras, as editoras são produtoras de rostinhos novos e títulos vendáveis...e os críticos não passam de reles bajuladores corruptos. Pergunta Flora, enquanto passa o rolo compressor nos brios de seus colegas: “Qual o interesse de um comentário crítico quando se pode obter muito mais visibilidade para escritores e lançamentos por meio de entrevistas, notas em colunas sociais e participações em eventos de todo tipo?”

Eu poderia enumerar aqui vários exemplos de atuação de tais personagens desprezíveis, e não apenas no terreno literário. Há críticos que escreveram sobre determinada orquestra pública em um jornal privado, ao mesmo tempo em que faziam parte da folha de pagamento da orquestra... Críticos que venderam sua consciência por jabaculê. Críticos que não se indispõem com nenhum escritor para não perder convites para festinhas e rodas literárias... Há críticos que ganham mais comercializando obras de arte do que escrevendo sobre a arte que comercializam. Críticos que exaltam as obras de seu chefe imediatamente superior para se manter no emprego... Críticos que caçam efemérides como quem caça marrecos na lagoa para assá-los no domingo. E assim vai. É fácil a gente assestar o canhão para as figuras amorais que vivem de jogo de poder e 
conquistas de cargos.

Flora poderia ter adentrado esse mundo perigoso, mas preferiu lançar mão do obituário de Wilson Martins para sapatear sobre o seu caixão e lançar farpas sobre esse torpe universo literário de que ele supostamente 
serviria como “imago”. Ela começa um ataque correto. Porém termina por se desviar do alvo, perdendo-se em elogios a escritores que, segundo ela, salvariam a pátria da discussão literária. A impressão que o texto me dá é de uma digressão raivosa que se encerra na mais patética imprecisão. Por que matar Wilson Martins novamente nos daria mais crédito?

Vou agora fazer agora a apologia de Wilson Martins, sem com isso me considerar “conservador”. Ele foi um iconoclasta legítimo e foi o derradeiro dos críticos militantes, com formação universitária eclética e não exatamente especializado em teoria literária. 

Sua morte ainda não foi bem assimilada. É certo que ele tinha ideias conservadoras e critérios científicos retrógrados. Afinal, era um intelectual público, não um universitário protegido na torre de cristal da cátedra. E no entanto, ao longo mais de 50 anos, Martins acompanhou com devoção tudo o que os escritores brasileiros produziram, novos e consagrados. Nas colunas do Jornal do Brasil e de O Globo, atacou farsas e consagrou quem merecia. Poucas vezes errou a mão. 

Seus 12 volumes da História da Inteligência Brasileira formam uma obra de referência monumental pela pesquisa e pela ambição de reunir tudo o que se produziu no Brasil em 500 anos de história. Para não falar da História da Crítica Brasileira, um compêndio que organiza as informações sobre a crítica literária. Martins, de seu jeito paternal, generoso e tradicionalista, forneceu dignidade ao ofício da crítica. Ele jamais se curvou a pressões de editoras nem era de frequentar os convescotes de Ouro Preto, Porto de Galinhas e Paraty. 

Era, sim, de se aprofundar na análise sociológica e histórica da obra literária, qualquer que tomasse por objeto, sem medo de confrontar posições. Generoso, nunca foi de ostentar argumentos inquestionáveis. Conversei com ele algumas vezes e sempre se mostrou simpático. Ele me disse que adorava música popular brasileira e que um de seus cantores favoritos era Mario Reis, de quem fui biógrafo (nem por isso ele comentou o livro nos jornais, preferiu fazê-lo de viva voz). E me contou que havia sido radialista na juventude, e tocava os “bambas da música popular” em seu programa. Morreu na solidão, e desprezado, como acontece com tudo que é intelectual brasileiro. Justamente aqueles que tinham de estar em contato com os jovens, com os 

professores, com o público, são aqueles condenados ao onanismo. Não o considero um modelo teórico. Mesmo assim, Wilson Martins foi um exemplo ético a ser seguido por qualquer pessoa que queira se devotar ao estudo da cultura.

O alvo de Flora não deveria ser o cadáver do grande crítico, mas a falta de critério e de moral de quem está vivo e atuante nos nossos círculos literários. Sinto nela a mesma solidão que acometeu Martins, o que me faz pensar que talvez ela tenha perdido a esperança neste mundo cultural. E não a condeno, de forma alguma. Só lamento que isso ocorra em uma das raras pesquisadoras de peso da literatura do Brasil. Temo que ela tenha perdido a esperança nas letras nacionais, da ficção à análise crítica, em nome de uma atitude progressista que só enxerga conservadorismo pela frente.

De qualquer modo, isso me faz pensar no estatuto da crítica cultural no Brasil desta década de 10. É bem possível que os críticos sobreviventes estejam sintonizados no mesmo “spleen” que assaltou Flora. Os críticos
perderam a fé no seu ofício e se mantêm abúlicos, sem reação. Estão se deixando morrer – e aqui vale a chamada à ação de Flora: deveríamos nos unir para limpar a sujeira subliterária que emporcalha este país. Perdemos a crença na discussão de ideias não porque há conservadores no poder (eles sempre estiveram lá, Flora!), mas sim porque não encontramos eco no público-alvo: o leitor. É ele que fará a literatura e a cultura retomar o gênio e o entusiasmo. Não importa se com o livro, o IPad, os blogs e os twitters. No ano passado, eu me converti em nanocrítico ao postar minicríticas pelo twitter, de Paraty. Eu e muitos outros estão usando as ferramentas da internet para continuar a emitir opiniões, para iluminar como vagalumes as poucas pessoas que nos seguem. 

Talvez o crítico de hoje não tenha um papel, e sim um papelão. Mas fazer o quê? A crítica é um esforço, uma luta, e não um privilégio deste ou aquele profissional. É o exercício constante do ceticismo, da interpretação e da compreensão maior do objeto artístico. Depois da segunda morte preconizada por Flora, só me resta fazer um convite para os ricos de espírito: vamos reenterrar Wilson Martins com as honras que ele merece, e buscar entender seu legado não com olhos viciados na dicotomia conservadorismo versus progresso. Esse tipo de preconceito leva ao isolamento dos grandes cérebros (como o de Flora), à proliferação da indústria da vaidade cultura - e ao atraso. Wilson Martins nos legou, além de uma obra venerável e uma certa estética tradicional (com a qual ninguém é obrigado a concordar, como não sou), uma atitude ética. No fundo, é isso que interessa restituir agora. Só assim a crítica vai parar de agonizar e se tornar essencial em uma cultura em mutação como a de agora. Vamos começar expondo a imundície, para depois varrê-la ao esquecimento.