sábado, 30 de outubro de 2010

Crítica Literária

A tarefa crítica tem diante de si um objeto concreto: a obra literária. Esta pressupõe a atividade de um sujeito criativo: o escritor/poeta. Este tem à sua frente um destinatário indefinido: o leitor. Em princípio, portanto, há três figuras em jogo: o autor, a obra, o leitor. O crítico, naturalmente, não pode ignorar nenhum dos três. O menosprezo de um – e o conseqüente privilégio do outro – foi o responsável pela falácia das concepções críticas do passado: privilégio do autor – o erro da crítica biográfica; do leitor – o erro da crítica impressionista; da obra – o erro da crítica formalista em geral, como a estilística, a semiologia, o estruturalismo etc.
O autor é, antes de mais nada, um indivíduo histórico concreto,
nascido numa determinada época, numa determinada sociedade, com uma estrutura econômica, uma organização política, um sistema jurídico que condicionam sua existência desde antes do seu nascimento e aos quais ele não pode fugir. Ele pode modificar esses elementos, mas qualquer ação nesse sentido já está previamente condicionada pela própria ação que esses elementos exerceram/exercem sobre ele. Noutras palavras: ele tem que agir sobre a sua sociedade com os instrumentos fornecidos por essa própria sociedade, ou seja, por seu momento histórico.
Como escritos, esse indivíduo deverá ter:
a) uma determinada maneira de combinar as palavras no verso/frase – vinculada a um desejo de atingir a perfeição;
               
b) um determinado modo de ver o mundo – vinculado a um desejo de comunicar essa mundividência a um público universal;
c) um certo ideal de comportamento – vinculado a um desejo de incorporar ao padrão de vida do seu público a sugestão de mudança implícita em seu texto.
Da mesma maneira, a obra é um objeto concreto, produzida num determinado momento e só produzível naquele determinado momento. Ela organiza três macro-elementos internos desdobrados em diversos micro-elementos que se potencializam em múltiplas relações:
um tema – sempre referido a um problema humano, ponto de partida da criação, fornecido pelo meio;
uma forma – estruturação estetizante desse problema, conferida pelo autor;
a linguagem – instrumento literário de abordagem do problema do humano, recebida e modificada pelo escritor, e que, por isso, participa da natureza comunitária do tema e da natureza individual da forma.
Reunindo esses três elementos, a obra traz em seu corpo as marcas identificadoras tanto da época quanto do autor que a produziu, ou seja: uma dimensão coletiva, presente na linguagem e no tema; uma dimensão pessoal, presente na linguagem e na forma. Uma vez publicada, esse movimento sociedade-autor se reverte e se transforma em obra-sociedade: assim, como a sociedade agiu sobre o autor, através dos condicionamentos históricos, o autor passa a agir sobre a sociedade, através da obra publicada.
Para tanto, a arte exige de toda obra pelo menos três requisitos indispensáveis:
interesse – que está em seu conteúdo: a importância que este apresenta para atrair e prender sucessivas gerações de leitores por tempo indeterminado, e que será tanto mais interessador quanto mais atual for o problema humano que o consubstancia;
eficácia – que está na sua forma: o poder necessário para reproduzir o interesse, diretamente vinculado ao talento do escritor;
permanência – que resulta da união do interesse do conteúdo e da eficácia da forma, para superar os limites originais e originários de tempo e espaço da obra, já que nenhum escritor se afirma como agente cultural se sua obra morrer com ele.
O leitor é um contemporâneo ou póstero do autor, que procura a obra com uma necessidade dupla: informar-se e/ou aprazer-se, baseado em dois princípios universais, comuns a todo homem normal – o princípio de saber e o princípio de fruir. Todo homem normal deseja ter conhecimentos e prazeres, e a obra literária é uma fonte de satisfação a esses dois desejos.
Diversos do conhecimento científico/filosófico, que é mais objetivo, e do prazer material, que é mais universal, o conhecimento e o prazer artísticos variam de autor para autor, de leitor para leitor, segundo as disposições anímicas de um e de outro no momento da escritura e da leitura e podem assumir as mais diversas formas: o conhecimento pode se transfigurar em incentivo, persuasão etc., e se define na ampliação da mundividência; o prazer, em comoção, consolo etc., e se define no refinamento da sensibilidade do leitor, fundidas as duas conseqüências na humanização do universo – finalidade última de toda prática cultural.
Aí temos caracterizadas brevemente as três figuras que pré-existem à tarefa crítica. Mas o objeto imediato dessa tarefa é a obra: a constituição do autor e as reações do leitor só interessam na medida em que iluminem ou acrescentem o ser da obra.
Se esta é uma reunião de tema-forma-linguagem, exigindo intresse-eficácia-permanência, somente realizada no contato com leitor, a tarefa crítica deve tomar a obra e vê-la:
1) em seus recursos instrumentais, ou seja: a sua expressão – o conjunto de processos lingüístico-estéticos de que se serviu o autor para literatizar a sua visão de mundo;
2) em sua visão de mundo, ou seja: a sua ideologia – o conjunto de posições  culturais que o autor assume, tanto ao nível da consciência quanto da inconsciência, sobretudo a partir das colocações denotativas;
3) em sua atuação sobre o leitor, ou seja: a sua repercussão psico-social – o conjunto de efeitos produzidos pela obra sobre o leitor e sobre a sociedade, verificáveis em depoimentos pessoais ou em fatos históricos.
A análise dos recursos instrumentais foi o reduto privilegiado de todas as teorias e críticas esteticistas: reduzindo a obra literária à dimensão artesanal do "estilo", essa crítica fechou os olhos à fermentação ideológica e à repercussão social do poema. A área instrumental é a dimensão essencial da obra – o seu reduto ontológico – mas a focalização dos seus atributos não pode ultrapassar o nível da instrumentalidade: pois o autor se serve desses recursos literatizantes exatamente como meios para a estetização de sua ideologia. Donde se deduz que restringir a crítica a esses elementos constitui uma atitude nitidamente contra-ideológica: contornar a ideologia para retirar o real de discussão e evitar a repercussão histórica da obra.
Uma crítica mais ampla verá esses atributos literários em sua funcionalidade estética, ou seja: dando vida poética ao problema humano que eles literatizam. Aqui, a ideologia do autor aparece transfigurada exatamente pelo procedimento literatizante a que é submetida, donde resulta uma ideologia sem a restritiva coloração política que o termo assumiu depois do lançamento do repto marxista, mas no seu sentido pleno de conjunto de idéias a orientar o comportamento do indivíduo que as formula. Só não se confunde com a última de toda prática cultural.
Mas uma crítica verdadeiramente totalizante não poderá deixar de investigar a repercussão da obra analisada, desde seu espaço imediato (a sociedade onde nasceu e a que ela se dirige) até o seu espaço possível (ou seja: o próprio planeta). Evidentemente, o crítico não tem como investigar o efeito individual da obra sobre cada leitor isolado, mas pode observar a reação coletiva dos leitores após a leitura, como no caso daqueles livros que provocarem revoluções e que alteraram o rumo da história. Quanto mais ampla for a área de propagação do efeito desta obra, tanto maior será a sua significação para a humanidade. No caso de obras do passado, já reconhecidas pela tradição, a própria História fornece os dados para a avaliação. Os exemplos são muitos: desde Homero, com sua influência na formação de uma mentalidade grega, passando por Camões, com seu apelo à resistência nacional, até os mais diversos escritores contemporâneos, empenhados – os representativos do nosso tempo – em persuadir o leitor a um combate direto pela humanização do presente.

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