quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Por uma crítica mais careta

POR DANIEL OLIVETTO *
O artigo escrito pelo professor Heron Moura, Onde está Aline?, publicado no último sábado no DC Cultura, dá continuidade às discussões sobre o anonimato de Aline Valim na Ilha, e eu gostaria de abrir um pouco mais a conversa sobre alguns aspectos, em especial no que diz respeito às relações entre anonimato, ficção e virtualidade, três coisas que me parecem muito distintas. Em primeiro lugar, concordo que a personagem Aline Valim, nossa crítica virtual, não seja um robô, portanto, é um ser que responde (ou deveria responder) por suas críticas. Honestamente, creio que um anônimo não responde por absolutamente nada, pois não se sabe que compromisso um anônimo tem quando escreve. E não se trata de conhecer ou não a procedência de um texto para poder discutir com suas idéias. Posso discutir com as idéias da bíblia sem saber quem a escreveu de verdade, não? No entanto, não saber quem é Aline Valim nos impede de discutir de outras maneiras suas "críticas", pois não sabemos de que lugar Aline nos fala. Não falo de ter ou não um pedigree, e sim de saber quem é o ser humano com quem converso, já que estamos lendo um jornal, material de grande compromisso com o real. Pode parecer "careta", mas se não sei quem escreve, para quem eu respondo? Com quem eu converso? Pode ser mesmo "careta" em tempos de internet acreditar em identidade, mas se não sei quem escreve, não faço idéia do que o autor quer com um texto, e creio que a noção de responsabilidade se baseia nisso: saber quem assume o que é dito. Sobre o que comenta Heron Moura a respeito do nosso dia-a-dia virtual, realmente estamos acostumados diariamente a responder diversos e-mails, sim, e a lidar com diversas pessoa@provedor.com.br. No entanto me parece muito distinto responder um e-mail para barbaraheliodora@provedortal.com.br e para alinevalim@provedortal.com.br, pois, eu sei quem é Barbara e não sei quem é Aline. Não é diferente responder virtualmente para um conhecido e para
alguém que não faço idéia de quem seja? Certa vez conversei virtualmente com Sara Kane em seu fotolog, após um comentário seu sobre um espetáculo que dirigi, Hagënbeck Ltda, referente a apresentação no Sesc Prainha em fevereiro de 2007. Não chamo a escrita de Sara Kane de crítica, e sim de comentário, pois creio que uma crítica não é apenas um texto em que alguém fala sobre suas impressões e adjetivos a respeito de uma obra, e sim um texto em que podemos refletir sobre a obra, um texto que fundamente suas idéias e impressões. Um texto crítico propõe um estudo mais especializado do que um comentário mais simples de blog. Ambos são importantes e abrem discussões, mas são distintos. Perguntei a Sara Kane porque não tinha ficado para o bate-papo ocorrido logo após a apresentação, momento em que poderíamos discutir presencialmente diversos temas, problemas do espetáculo, e o que mais fosse pertinente ali, logo após a sessão. Mas, tudo bem, a discussão se deu por fotolog e foi até prazerosa. Sara Kane não precisa de pedigree, afinal qualquer um pode ter um blog e escrever o que quiser. Mas não seria necessário saber de que lugar cada um fala? Quando minha mãe comenta sobre uma peça minha, ela sempre começa dizendo: "Olha, eu sou leiga, mas eu acho assim, né?...". Mamãe, que não tem pedigree de crítica, situa o lugar de onde fala e seus comentários sempre me ajudam muito. Comentário é comentário, e pode contribuir muito, sempre. Mas, quando se chama um texto de crítica, supomos que vamos ler um texto que abre uma discussão mais ampla e que não se baseia no  "eu acho assim". E esperamos muito menos que uma crítica pareça um texto-veredicto, que encerra ali o próprio ato reflexivo. Mas Sara escreve comentários, e não críticas, e por um tempo até achei seu anonimato interessante, embora lhe desse menos credibilidade que dou a qualquer pessoa com ou sem pedigree, pois como não faço idéia de quem seja Sara Kane, não sei se suas opiniões não passam de ironia. Quando minha mãe fala sobre teatro, eu sei de onde ela fala. Quando Edelcio Mostaço fala sobre teatro, eu sei de que lugar ele fala, e mesmo discordando muitas vezes dele, suas críticas se fundamentam, são escritas com compromisso de quem domina o assunto e me deixam este espaço para discordar e conversar a partir de seu texto. Será que é tão "careta" assim querer saber com quem estou conversando? O que ocorre com Aline Valim, nossa crítica que já chega fazendo sucesso na Ilha, é que esta ocupa um espaço privilegiado num veículo oficial, como comentam Jefferson Bittencourt e Marisa Naspolini em seu artigo Sobre ética e crítica em tempos de internet (publicado no DC Cultura de 20 de setembro de 2008). E neste espaço privilegiado se discute virtualmente o que os artistas fazem presencialmente, o que gera um atrito bastante compreensível. O teatro é uma arte presencial, que ocorre ali, frente a frente, e que coloca no mesmo território espaço-temporal a ficção e a realidade. No entanto, a respeito do que comenta Heron Moura (autor que eu sei que existe, pois, paranoicamente, corri para o site da UFSC para saber se estaria respondendo a um anônimo ou não), não é Hamlet quem desce do palco para cumprimentar o  público. Hamlet é um personagem, uma criação artística, e quem desce à platéia é um ator. Sara
Kane e Aline Valim, que são personagens de outro gênero criativo, não vão ao camarim de Hamlet dizer o que acharam, logo, assim como Hamlet, não existem como sujeitos. Honestamente, não penso que seja necessário um pedigree para escrever crítica. Eu já exercitei escrever algumas críticas, mas nunca tentei publicá-las, pois achava que não ajudavam a discutir muita coisa, e deixei de publicá-las por este motivo e não por não ter pedigree. E não tenho mesmo, mas, poderia publicá-las em meu blog, deixando claro o lugar de onde falo: "Sou ator, tenho 28 anos, etc e tal, e deste lugar olho a obra tal assim". Creio que para escrever crítica seja necessário conhecer o ambiente da obra que se critica, com ou sem "diploma de crítico" (aliás, diploma de crítico não existe!). Penso que é preciso assumir sua opinião, discuti-la de maneira generosa e responsável, e fundamentar o uso de "achismos" crônicos como "cometer deslizes infantis", como comenta Aline Valim em sua crítica sobre o espetáculo Simulacro de uma Solidão (publicada no DC). E fundamentar não significa defender uma tese, citar um cânone e fechar o parágrafo. No caso desta crítica de Aline talvez fosse importante fundamentar apenas justificando o que significa uma atriz "cometer deslizes infantis", ou dizer que o "jogo com o público não acontece". Como se sabe que uma peça chega ou não ao público? Aline Valim é "o público"? O que significa "o jogo não acontecer"? Sabemos que o espaço para crítica no jornais é muito limitado e às vezes com uma lauda e meia não se consegue fundamentar tudo, então, que tal ser menos impactante? Quando uma crítica apresenta este tipo de "achismo" radical _ e fechado em si mesmo _ não se tem muito como discutir. Se eu chego chutando a porta, ninguém vai me receber bem. Não foi assim que mamãe ensinou? Um crítico não precisa passar a mãozinha na cabeça de ninguém, nem dizer tudo cheio de cautelas, mas deveria fundamentar o que acha para que possamos discordar, pois um crítico não é "o público", e sim "um público". E ser generoso não é ser bonzinho, é ser educado, o que me parece o mínimo pra abrir uma conversa. Além de chutar a porta Aline Valim saiu correndo, porque não sabemos quem ela é.
Quando leio uma crítica que diz que num espetáculo se "comete deslizes infantis", sinceramente, o que me resta é fechar o caderno e pular para os classificados. Além de pouco educado, me parece covarde essa dimensão do anonimato. Talvez seja "careta" pensar assim, mas em tempos de tantas falas sobre a virtualidade que engole as relações humanas, opto pela caretice de tentar conversar com pessoas reais. Como já diria mamãe: "Eu acho assim, né?".
* Ator da Cia. Experimentus Teatrais e graduando em Artes Cênicas pelo Ceart/Udesc

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