quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Onde está Aline?



Heron Moura

Eu também não conheço Aline Alvim. Não sei se ela é real ou virtual. Contudo, contrariamente ao que defendem os autores do artigo “Sobre ética e crítica em tempos de internet” (publicado no DC Cultura, de 20 de setembro de 2008), acho que Aline Alvim tem direito à existência. Aline Alvim publicou, neste suplemento cultural, algumas críticas sobre peças teatrais produzidas por grupos catarinenses. Mas ninguém nunca viu Aline, ela não dá aulas na UFSC ou na UDESC, ela não foi vista na Lagoa, Aline não existe.
Os autores do artigo citado reclamam que não sabem “a procedência” das críticas teatrais, e por isso questionam a legitimidade das leituras críticas de Aline (vamos chamá-la assim, com intimidade, já que parece que ela não existe mesmo).
Eu esperaria um pouco mais de fair play de atores e diretores de teatro. Eles inventam e encarnam seres imaginários. Eles dão corpo a vidas virtuais. Se aceitamos personagens em busca de um autor, por que não aceitar um personagem em busca de peças para criticar? Como separar o real do irreal no mundo fantástico do teatro?
A cobrança da procedência e das credenciais de Aline é o equivalente artístico do bordão social “sabe com quem está falando?”. Os autores do artigo, talvez irrefletidamente, cobram um status social de quem se dirige a eles, na forma de crítica de sua produção artística. Mas então para fazer crítica é preciso antes pegar um diploma (imaginário) de crítico? Quem, nessa ilha, está habilitado a fazer crítica teatral? Professores da UFSC e da UDESC? Unisul pode?
Onde está Aline, que não responde? Por trás de Aline há uma pessoa real. Alguém escreveu os textos. Não foi um robô. Aline não é um robô. Mas não seria maravilhoso se houvesse nessa Ilha da Magia um robô super-avançado, feito ali no CTC da UFSC, que entrasse disfarçado nas exibições de teatro e escrevesse críticas depois? Isso não seria amar o teatro ao extremo?
Aline é anônima, não é virtual. Seria antiético se ela usasse o anonimato para difamar pessoas. Mas ela apenas escreveu críticas teatrais. Os artistas envolvidos podem, é claro, se defender, mas não é isso que o artigo “Sobre ética e crítica em tempos de internet” faz. Esse artigo em nenhum momento debate a proposta artística de suas produções, o conteúdo estético das soluções adotadas nas obras. Aline provoca o debate estético, mas perguntam antes se ela existe. Já pensou se a gente perguntasse antes a Hamlet se ele existe para então ouvir o que ele tem a dizer? O teatro vive da crença na ficção.
Eu daria dois argumentos para mostrar que a ficção é essencial para a arte. Mais precisamente, uma mescla de ficção e realidade, que é o que Aline faz (supondo que ela não seja o robô do CTC).
Keith Devlin, no livro O gene da Matemática, (Record, 2006), tradução de Sergio Rego, argumenta que o ser humano desenvolveu, ao longo da evolução da espécie, um segundo cérebro. Esse segundo cérebro recebe informação não do mundo externo, mas do primeiro cérebro. Ou seja, ao passo que o primeiro cérebro está diretamente conectado ao mundo exterior, o segundo cérebro processa símbolos, representações mentais. Ele vive virtualmente, a partir de estímulos internos à mente. A vida dos símbolos nos deu muita coisa: os conceitos, a linguagem, a matemática e a arte. Mas os símbolos só existem na nossa mente. Desde o início, somos sensíveis tanto ao real quanto ao fictício. Aline, ao que parece, é um símbolo – ela vive no segundo cérebro. Mas não dá para extirpar o cérebro que imagina e simboliza. Assim como não dá para negar a parte do humano que se conecta ao mundo. Onde está Aline?
Outro argumento a favor da fusão entre real e irreal na arte é a interpretação de metáforas. Examinem a conhecida metáfora de João Cabral de Melo Neto: “Um galo sozinho não tece uma manhã”. Esse verso nos situa numa ponte entre o real e o irreal. Ele nos oferece um mundo em que galos são aranhas, e em que manhãs são teias. No entanto, não somos jogados de chofre num mundo imaginário, pois o galo do poema é ainda o galo que canta de manhã. A realidade, subvertida, retorna no poema. Há uma troca de significados entre o galo e a manhã, entre a aranha e a luz. Hamlet também pode descer do palco e apertar a nossa mão.
Por tudo isso, sou a favor da existência de Aline. Não sei quem é, se mora no Campeche ou na Trindade. Mas ela vai ao teatro e discute em público o que vê. Não é pouco.
Eu sempre tive a impressão de que nossa ilha é virtual. Sendo assim, a arte que se faz nela também é. Por que esquentar a cabeça se seres virtuais começam agora a opinar sobre a cultura na ilha? Isso é ótimo! O pior para um artista não é ser criticado, ainda que por seres imaginários. O pior para um artista é se exibir para as paredes, e ouvir como resposta apenas um silêncio bem real. (Publicado no Diário Catarinense, em 27 de setembro de 2008).
Este artigo foi publicado em 27/09/08 

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