segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Sobre ética e crítica em tempos de internet

20 de setembro de 2008 | N° 8200


Para que um texto crítico tenha validade e cumpra seu papel social é fundamental conhecer sua procedência
O sujeito ético consiste, fundamentalmente, em um ser racional e consciente (sabe o que faz), livre (decide e escolhe o que faz) e responsável (responde pelo que faz). Assim, podemos pensar que uma ação é ética se for consciente, livre e responsável. Desde que surgiu, a internet tem se deparado com problemas éticos no que diz respeito aos direitos de autor, aos plágios, aos crimes financeiros, roubos de dados, disseminação de vírus, falsidade ideológica e outros, a maioria deles facilitado pelo anonimato que a rede proporciona, livrando o autor das responsabilidades sobre seus atos.

A produção teatral catarinense vem se deparando, desde o ano de 2007, com uma situação ética muito particular: o surgimento de críticos teatrais em blogs que funcionam exclusivamente através do anonimato. Foi assim com a aparição de Sarah Kane, uma jovem que usou o nome da escritora inglesa, morta em 1999, para discorrer sobre a produção local. Durante quase um ano, Sarah escreveu em seu blog (momento-critico.blogspot.com) sobre as principais montagens locais, gerando desconforto e ira entre os grupos e artistas devido à sua insistência no anonimato, contrariando um princípio básico e caro à crítica (seja ela teatral, musical ou literária): a crítica traz - ou deveria trazer - a perspectiva de um diálogo fértil entre criador e crítico, e entre crítico e leitor, e, portanto, prescinde de uma relação clara e transparente entre ambas as partes.

Para que um texto crítico tenha validade e cumpra seu papel social é fundamental conhecer sua procedência, saber a quem devemos nos remeter enquanto leitores, que histórico traz essa pessoa a quem creditamos confiança na condução de nosso olhar estético. Isso era impossível no caso de Sarah Kane, que permaneceu no anonimato até que uma noite, após uns copos a mais em uma mesa de bar, um escritor local admitiu, entre amigos, ser ele a mente por trás do nome da misteriosa e evasiva "crítica" local.

O Estado de Santa Catarina já contou com críticos de peso no jornalismo diário, como foi o caso de Eliane Lisboa (pesquisadora e dramaturgista, ex-professora do Centro de Artes da Udesc), no Diário Catarinense, e Edélcio Mostaço (crítico renomado do jornal Folha de S.Paulo, nos anos 1980, e atual professor do Centro de Artes da Udesc), no jornal A Notícia. No entanto, esta tem sido uma carência reconhecida no meio teatral catarinense. Falta-nos a presença permanente de um profissional que domine um instrumental teórico que poucos espectadores possuem, possibilitando a análise da obra cênica através de um olhar treinado e habilitado a ver o que o olho comum não enxerga. De acordo com Sebastião Milaré, crítico e teórico reconhecido nacionalmente, "o crítico é um especialista e não um espectador privilegiado. Vê o espetáculo como um pensamento transformado em imagens, sons, movimentos, luzes, e discute esse pensamento".

Em julho de 2008, surgiu uma nova "crítica" na cena local. Assina como Aline Valim, e foi apresentada virtualmente ao meio teatral pelo mesmo escritor-Sarah Kane, que recomendou aos amigos que a lessem e prestigiassem. Desde então, Aline vem tecendo comentários pessoais em seu blog acerca das produções teatrais locais. Recém-chegada à cidade, Aline escreve sobre grupos e artistas com intimidade, inclusive cita produções realizadas há mais de cinco anos, e o mistério de sua existência ganha proporções novelescas quando não se encontra um único integrante do meio teatral que a conheça pessoalmente.

Recentemente, Aline Valim passou a assinar críticas no caderno de Cultura do Diário Catarinense, opinando sobre como se deve proceder, ou não, na montagem de um espetáculo (entre os trabalhos analisados recentemente, encontram-se O Espantalho, De Malas Prontas, Jardim das Delícias e Simulacro de uma solidão). Aline Valim, que se apresenta como poeta e com o livro Sittah no prelo, age como crítica, mas não passa de uma espectadora privilegiada. Duplamente privilegiada, pois conquistou um espaço na mídia escrita onde expõe suas opiniões com o peso de uma especialista. Aline Valim é um nome fictício. Ninguém a conhece, não dispõe de telefone, só se comunica por e-mail, não dá entrevistas nem marca encontros, pois está sempre viajando (Paris, Londres...), e, ainda assim, consegue acompanhar a farta produção local.

A crítica Bárbara Heliodora comenta que para ser um bom crítico é preciso, acima de tudo, adorar teatro. Em seguida, é necessário procurar conhecer o máximo que puder sobre autores e escolas de interpretação e ir muito ao teatro. Ela insiste que o crítico não deve ser paternalista. "Passar a mão na cabeça não é positivo para o teatro, pelo contrário", afirma a polêmica crítica, conhecida pela severidade arrasadora, que causa temor no meio teatral.

Milaré reafirma a importância do respaldo de intelectuais conhecedores da arte, capacitados à análise e discussão do fenômeno estético. A crítica teria, para ele, "uma função analítica e organizadora das diferentes correntes de pensamento que incidem na produção dramática".

Voltemos, então, à questão ética, ao sujeito que responde por seus atos. O DC Cultura é um caderno de idéias, valorizado pela presença constante de intelectuais e formadores de opinião reconhecidos na cena catarinense, pessoas reais com quem se pode conversar e trocar idéias, de quem se pode, inclusive, discordar. Aline Valim não é real. Trata-se de uma invenção virtual, uma ficção criada por alguém que não ousa responsabilizar-se por seus atos, por incompetência ou covardia. Isto é um desrespeito com o público e um desserviço ao teatro.

O exercício da crítica é um exercício de cidadania, baseado na troca, e por isso deve ser feito com responsabilidade. E o primeiro ato de cidadania é assumir sua própria identidade. Simples, não? E uma vez que se trata de uma questão de interesse coletivo, sugerimos ao senhor Marco Vasques, escritor e funcionário da Secretaria de Cultura, Esporte e Turismo de Santa Catarina, que use sua experiência em dupla identidade, como mentor de Sarah Kane, para convencer sua amiga Aline Valim (até o momento, Marco Vasques é o único integrante do meio artístico a admitir que a conhece pessoalmente) a se revelar publicamente, dando, assim, uma contribuição verdadeiramente relevante ao teatro local.

* Jefferson Bittencourt é músico e diretor teatral, dirige o grupo Cantus Firmus, a Persona Cia. de Teatro, a Trilogia Lugosi e é sócio da Vinil Filmes, mantém em Florianópolis a Camarim Escola de Arte; Marisa Naspolini é atriz, produtora e professora de teatro no Centro de Artes da Udesc, dirige a Áprika Cooperativa de Arte e é presidente da Gesto - Associação de Produtores Teatrais da Grande Florianópolis

JEFFERSON BITTENCOURT E MARISA NASPOLINI *

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